Espetada da Madeira em terras de Gaula

Madeira. Gaula. Achada de cima. Espetada de carne a ser assada na lareira

Numa sexta-feira à noite (2 de Novembro de 2012), a uma hora tardia para a nossa hora habitual de jantar, fomos levados pelo Élvio Sousa a provar o que ele considera a melhor espetada de carne da Madeira.
O espaço onde se come, talvez não seja correcto chamar-lhe restaurante, fica à margem da estrada, no lugar de Achada de Cima, na freguesia de Gaula, concelho de Santa Cruz.

Madeira. Gaula. Achada de Cima. Sala de entrada. Nov. 2012

Trata-se de um velho edifício, com paredes de pedra vulcânica de cor escura sobre as quais foi lançada uma placa de cimento que permanece à vista. O espaço acessível aos comensais é constituído por três divisões sem janelas (a única entrada de luz é a da porta de entrada) que se sucedem: a sala de entrada, a sala com mesas e a sala com a lareira onde se assam as espetadas, na qual também há uma mesa e cadeiras.
Não julgue que aqui vai encontrar um lugar requintado, com tudo o que estamos habituados num restaurante. Não, considere este sítio mais como uma tasca ou uma tenda de arraial, um espaço improvisado onde vai comer sem prato, garfo ou faca. Considere isto como uma experiência de tempos passados: um local onde vai poder saborear uma excelente espetada, a qual terá de comer com pão e com o auxílio das mãos. Inolvidável!

Para ter acesso à sala com mesas tem de se contornar o balcão onde o Sr. Pedro corta as carnes e o balcão de atendimento (no qual se insere a banca onde se lava a loiça).
É nesta primeira sala, por detrás de um balcão frigorífico onde se expõem a carne de vaca, que o proprietário do estabelecimento, o Sr. Pedro Freitas corta a carne e prepara as espetadas. Ao lado, numa arca frigorífica vertical guarda-se a carne, à qual o Sr. Pedro recorre sempre que necessita de mais. No balcão frigorífico fica visível a carne de vaca que vai ser cortada – ossobuco, mendinha, picanha.

Madeira. Gaula. Achada de Cima. O Sr. Pedro Freitas cortando a carne para a espetada. Nov 2012

O Sr. Pedro, vestido com bata branca, de luva metálica na mão esquerda e enorme faca na mão direita, ao mesmo tempo que vai cortando a carne em pequenos pedaços, conta que aprendeu a arte de talhante com um tio, era ainda criança pequena. O espaço que hoje possui e onde vende espetadas abriu-o há oito anos atrás. Por estranho que possa parecer trabalha sozinho: corta a carne, prepara a espetada, abre o vinho, serve água ou sumos, lava a loiça e faz a conta do que se comeu.
Quem aqui vier tem de se lembrar que vem para comer carne de alta qualidade, “carne de palheiro” como se diz na Madeira, ou seja, carne criada pelo lavrador num “palheiro”, uma espécie de estábulo de duas águas, construído em pedra e de dois pisos, onde são criados os gados (geralmente vacas) nas áreas rurais na Madeira (informação de Élvio Sousa).

Madeira. Gaula. Achada de Cima. Carne usada na espetada. Nov 2012

A carne é vulgarmente ossobuco, mendinha e picanha, sendo a espetada preparada ao gosto do cliente – mais carne de um tipo, menos de outro. Perguntei ao Sr. Pedro qual a carne da sua preferência para fazer a espetada, tendo-me informado que prefere a mendinha, pois a flor da carne, ou seja, a gordura daquela parte da carne, dá-lhe paladar e garante a sua tenrura.

Madeira. Gaula. Espetadas de carne prontas a serem assadas. Nov 2012

Junto ao balcão frigorífico existe um caixa metálica com água quente onde se colocam os longos ferros das espetadas com cabo em plástico branco. Explica o Sr. Pedro que tal aparelho garante a esterilização dos ferros.
Dessa caixa tira o Sr. Pedro o longo ferro onde espeta vários pedaços de carne. Pronta a espetada deposita-a nas mãos do comensal e, a partir daí, o trabalho deixa de ser seu e passa a ser feito pelo comensal, o qual agarra a espetada pelo cabo de plástico, a polvilha com sal grosso e a vai assar na lareira.
A lareira é uma espécie de banca, sobre a qual pousa uma estrutura de ferro em V, na qual ardem toros de madeira, sendo os fumos expelidos por uma chaminé. Aos lados desta estrutura em V espalham-se brasas sobre as quais, e a uma distância de cerca de um palmo de altura, se assam as espetadas. Também a lareira é feita de cimento, tendo um aspecto rudimentar.

Madeira. Gaula. Achada de Cima. Espetadas de carne a assar. Nov 2012

Aí fomos pôr as nossas espetadas, e aí seguimos o conselho de outros comensais que nos ensinaram como deveríamos proceder: ir virando com regularidade a espetada, apagar com um pouco de água alguma labareda inoportuna que teimasse em queimar a carne, não a deixar assar em demasia, pois a carne ficaria rija.
A espetada come-se na sala do meio, ou seja, na sala que fica entre a sala de entrada e a sala da lareira. Esta sala, de forma rectangular, tem cadeiras e mesas, e no sentido do comprimento da parede, um longo arame no qual se penduram as espetadas que ficam a pingar sobre uma travessa. No tecto, em cimento desnudo, e sobre os arames, aqui e ali pendem ramos de loureiro. Sobre a mesa, que não é coberta com toalha, para além da espetada há apenas pão caseiro de Gaula, pacotinhos de manteiga, uma faca de serrilha, usada para cortar o pão em fatias, copos, a garrafa de vinho tinto, sumos, para a criança e a jovem que nos acompanham, guardanapos, e dois garfos que ajudam a retirar a carne da espetada. Para comer usam-se as mãos, a fatia do pão sobre o qual se poisa a carne e nada mais! Uma extrema simplicidade para provar uma espetada feita com saborosa e suculenta carne. Uma delícia!

Madeira. Gaula. Achada de Cima. Uma das mesas da sala da lareira. Nov 2012

No dia em que fomos havia no restaurante três grupos de comensais: um grupo de homens que, dado não terem mesa, comeram de pé, no balcão de atendimento, na sala de entrada; um grupo de jovens que comeu numa mesa existente junto à lareira; e um enorme grupo de pessoas, na sua maioria mulheres, que festejavam os anos de uma delas. Este grupo trouxe consigo batatas cozidas com pele, pratos de plástico, vinho caseiro em garrafão de água, de plástico, e para sobremesa pudim de manga em recipiente de pyrex.

Madeira. Gaula. Acha de Cima. Sala onde se come a espetada. Repare-se nos arames junto ao tecto e nos quais se penduram as espetadas. Nov 2012

Confesso que nunca tinha comido em espaço semelhante, tendo-me lembrado uma jantar feito há muitos anos atrás, na década de 80, quando regressados de um mês de férias no estrangeiro, deparamos, à noite com uma arraial em terras de Bragança, onde se assava no espeto um boi inteiro. Sentámo-nos em mesas de madeira providas de bancos corridos e aí nos deleitámos com um excelente naco de carne, também acompanhado com pão. Ainda hoje recordo o sabor e a tenrura dessa carne.
Se for à Madeira, se quiser provar uma suculenta e saborosa espetada de carne na companhia de amigos; se não se importar de assar a sua própria espetada; de se sentar numa sala escura e desprovida de luxos; de comer a carne sobre um naco de pão, e utilizando as mãos; vá até à freguesia de Gaula, ao lugar de Achada de Cima e pergunte pelo restaurante onde se comem as espetadas ou pergunte pelo Sr. Pedro Freitas. Irá seguramente deliciar-se com uma excelente espetada e passar por uma experiência inolvidável que ficará gravada na sua memória por muito tempo. Experimente!

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Nota: As fotografias são da minha autoria, logo, sem qualidade, mas servem pelo menos para documentar o espaço e os gestos