O Mosteiro de Lorvão e a Doçaria Conventual

Nossa Senhora da Vida. Séc. XIV. Mosteiro de Lorvão. Foto IMF

Nossa Senhora da Vida. Séc. XIV. Mosteiro de Lorvão. Foto IMF

Este Sábado fomos até Penacova para visitar o mosteiro de Lorvão o qual impressiona pela sua grandiosidade e por se encontrar abrigado no fundo de montes, correndo aos seus pés um pequeno rio de águas limpas. Face a face com o mosteiro ergue-se a povoação de casas alinhadas ao longo da estrada. Infelizmente, do extinto mosteiro cisterciense feminino, apenas se pode visitar a igreja, a pequena sacristia, o coro, o claustro que ladeia a igreja e duas salas onde se encontra algum do acervo museológico.
No século XX e até 2012 aqui funcionou um hospital psiquiátrico que ocupava grande parte do edifício. Hoje, parece incerto o uso a dar a este enorme mosteiro, habitado ao longo dos séculos por filhas de algumas das mais ilustres famílias portuguesas.

Pormenor do claustro do mosteiro de Lorvão. Foto IMF. 10.10.2013

Pormenor do claustro do mosteiro de Lorvão. Foto IMF. 10.10.2013

Há pouco tempo o claustro foi intervencionado tendo sido adossado um novo edifício onde se projetava constituir um museu. Mas, a agrura dos tempos parece ter feito abortar o projeto, pelo que o edifício apesar de pronto se encontra vazio… Foi pena que em vez da criação de um novo edifício não se tenha aproveitado o existente…
O mosteiro de Lorvão deve ter sido talvez fundado no séc. VI (apesar de esta data não ser unanimemente aceite pelos investigadores), abrigando um mosteiro masculino, o qual a partir do séc. XI passou a seguir a regra de S. Bento.

Vindima. Missal antigo de Lorvão. Séc. XV. Foto ANTT. Publicada por BORGES, 2013: 26

Vindima. Missal antigo de Lorvão. Séc. XV. Foto ANTT. Publicada por BORGES, 2013: 26

No início do século XIII, o mosteiro viria a transformar-se numa congregação feminina da ordem de Cister, aqui vivendo D. Teresa, filha de D. Sancho I e mulher que havia sido de Afonso IX de Leão, e suas irmãs Sancha, Mafalda, Branca e Berengária. Sancha, viria mais tarde a fundar o convento de Celas, em Coimbra. Teresa e Sancha ficaram sepultadas em Lorvão, tendo sido desde cedo consideradas como Rainhas Santas e merecendo por isso a devoção dos fiéis, vindo a ser beatificadas a 23 de Dezembro de 1705 (BORGES, 2013: 15-34).

RRefeição. Missal antigo de Lorvão. Séc. XV. Foto ANTT. Imagem publicada por BORGES, 2013: 47

Refeição. Missal antigo de Lorvão. Séc. XV. Foto ANTT. Imagem publicada por BORGES, 2013: 47

Mas, não é a história do convento que nos interessa, mas a dedicação destas mulheres ao fabrico de doces. Em boa hora a Câmara Municipal editou o livro «Doçaria Conventual de Lorvão» (2013), da autoria de Nelson Correia Borges, um filho da terra, professor aposentado do Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o qual fez a sua tese de doutoramento sobre Lorvão – «Arte monástica em Lorvão: sombras e realidade: das origens a 1737».

Doces das freiras de Lorvão

Manjar branco feito em discos de barro vermelho. Fotografia de Nelson Borges (BORGES, 2013: 132).

Manjar branco feito em discos de barro vermelho. Fotografia de Nelson Borges (BORGES, 2013: 132).

O autor, profundo conhecedor da documentação referente a Lorvão e ao mosteiro, decidiu, nesta obra dedicada à doçaria conventual de Lorvão, dar a conhecer o que sobre o tema os documentos referem, alertando, no entanto, para a inexistência de receitas: “Não chegaram até nós livros de receitas, ou quaisquer apontamentos, ou, em rigor, não são conhecidos até agora, o que não quer dizer que não tivessem existido”.
Através da consulta documental o autor ficou a conhecer e desvenda a doçaria que saía das mãos destas freiras – alfenim, alfitetes, beijinhos de freira, beijinhos, beijos, biscoitos, bocados de abóbora, bolo de bispo, bolo de Santa Teresa, bolo podre de Lorvão, bolos d’arica, bolos de bispo, botelhada, broas de amêndoa, broas de ovos, capelas de ovos, caramelos, cavacas de Lorvão, cidrada, confeitos, derriços, doce de amêndoas, doce de laranja, farténs de amêndoa, fatias do céu, fatias do conde, fios de ovos, ginetes, lampreia doce, linguadas, manjar branco, manjar divino, manjar real, marmelada, marmelada de sumos, massapães, melindres, milharós, morgados, nabada, ovos doces, ovos moles, palermos cobertos (hoje nevadas), palitos, pão-de-ló de amêndoa, papos de anjo, pastéis, perada, pêssegos cobertos, queijadas, queijinhos do céu, súplicas, talhadas, tâmaras, tigelada, tolos, tortilhas, tremoços.

O que resta da antiga cozinha do mosteiro. Foto de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 50).

O que resta da antiga cozinha do Mosteiro de Lorvão. Foto de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 50).

Não tendo encontrado na documentação as receitas dos doces acima referidos o autor socorreu-se de pessoas (mulheres é claro!) que lhe deram a conhecer o modo de fazer estas iguarias. Apresenta um total de 53 receitas: 8 foram-lhe facultadas por Maria da Graça de Castelo Branco Leitão Barbosa Ribeiro (queijinhos do céu, tâmaras, tolos, lampreia doce, beijinhos, beijos e cavacas); 1 foi extraída de um “manuscrito de uma freira, em posse de família que esteve ligada ao Mosteiro de Lorvão” (Bolo podre de Lorvão); 1 recolhida em «Nova Arte da Cozinha» (1695) de Domingos Rodrigues (cidrada); 1 do mosteiro de Celas (manjar branco); 1 de Arminda Ferreira Baptista Santos, “agora utilizada e divulgada por D. Margarida Padilha Viseu” (Palermos cobertos); 1 publicada na revista «Marie Claire», N.º 38 de 1991 (Palitos); 1 de Maria Amália Martins de Carvalho Leitão Alpoim (Pastéis de Lorvão) e outra publicada por Emanuel Ribeiro e respeitante ao mosteiro de Bustelo (Pêssegos cobertos), as restantes foram recolhidas “da tradição oral, quer junto de familiares, quer junto de pessoas amigas que no-las comunicaram, mesmo antes das informações arquivísticas”.

Tabuleiro. Séc. XVII. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 45).

Tabuleiro. Séc. XVII. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 45).

Nelson Borges publica também a receita do Bolo das Infantas, informando que “esta receita foi divulgada na internet e publicada por Alfredo Saramago”, acrescentando que a incluía “com alguma reserva, porquanto este nome não aparece referido na documentação nem tão pouco a designação seria lógica num mosteiro onde a memória coletiva era sempre referida à rainha e não a infantas”. Tem razão o autor para duvidar da veracidade da receita publicada por Alfredo Saramago. De facto, o mesmo sucede com receitas publicadas por este autor como sendo provenientes de conventos de Braga e Guimarães, as quais nunca se encontraram nem nas fontes documentais nem na consulta de velhos livros de receitas pertencentes a antigas famílias de ambas as terras. Tal como sucede com a receita de Lorvão também as que o autor apresenta como sendo de Braga e Guimarães possuem nomes pouco usuais em contextos conventuais (FERNANDES, 2012: 12). Por tal motivo as receitas facultadas por este autor devem ser usadas com grande reserva.
Nelson Correia Borges não indica a proveniência do receituário das restantes 38 receitas, o que é pena, pois, é sempre importante conhecer a sua origem.

Prato de cobre usado para formar a lampreia doce. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 128).

Prato de cobre usado para formar a lampreia doce. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 128).

É bom dizer que todas as receitas foram experimentadas, agradecendo o autor a Emília Teresa Horta Peres, a “revisão e paciente execução das receitas” (BORGES, 2013: 12).
Intriga-me o que seriam os bolos d’arica. Confesso que nunca tinha ouvido falar de tal doce. Como seriam? Convém talvez lembrar que o verbo aricar significa “lavrar superficialmente a terra para livrá-la de ervas daninhas” (HOUAISS, 2003, I: 372), tendo o mesmo significado em castelhano (DICCIONARIO, 2001, I: 203).

Doces que adquiriam
Nelson Correia Borges transcreve documentação do final do século XVII através da qual se pode concluir que havia doces que eram comprados pelas freiras, como por exemplo os “pastéis que se dão no dia de Entrudo”, os “pastéis para os músicos” que se oferecem no dia da “consoada do nosso padre S. Bento” e os “confeitos para a consoada que na semana Santa se dão” (BORGES, 2013: 77-78).

Dois garfos de marfim. Mosteiro de Lorvão. Colecção Particular. Fotografia de Nelson Correia  Borges (BORGES, 2013: 61).

Dois garfos de marfim. Mosteiro de Lorvão. Colecção Particular. Fotografia de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 61).

A compra de doces no exterior do mosteiro sucedia em diversas congregações, principalmente nos conventos masculinos que adquiriam fora muitos dos doces que consumiam.

Os utensílios para fazer, transportar, servir e comer os doces
Nelson Correia Borges teve também o cuidado de ilustrar a sua obra com fotografias dos utensílios usados pelas freiras quer para fazer os doces quer para os transportar, servir e comer.
Ao longo da obra podemos ficar a conhecer vários recipientes de barro utilizados na conservação dos alimentos sólidos e líquidos, um graal de marfim, um tacho de cobre, uma colher de ferro, um prato de cobre utilizado para formar a lampreia doce, discos de barro vermelho para fazer o manjar branco, tigelinhas para os ovos moles, copos e jarra de vidro, pratos de faiança e porcelana com marca possessória, bem como tabuleiros para transporte de doces ou outros géneros.

Fragmento de prato de faiança com marca possessória. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Borges (BORGES, 2013: 50).

Fragmento de prato de faiança com marca possessória. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Borges (BORGES, 2013: 50).

Fragmento de fundo de prato de porcelana com marca possessória. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Borges (BORGES, 2013: 57).

Fragmento de fundo de prato de porcelana com marca possessória. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Borges (BORGES, 2013: 57).

Interessante é também a divulgação que o autor faz das caixas para guardar e transportar os doces, hoje difíceis de encontrar, e de dois singelos e interessantes garfos de marfim de quatro dentes.

Caixa para doce. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 51).

Caixa para doce. Mosteiro de Lorvão. Fotografia de Nelson Correia Borges (BORGES, 2013: 51).

Na documentação do final do séc. XVII encontrou o autor referência quer à compra de caixas (Maio de 1694) – “comprámos 19 caixas grandes para o presente das nossas Santas Rainhas”, quer de tigelinhas (Novembro de 1691) – “compramos de tigelinhas para doce…” (BORGES, 2013: 77-78).
A quem gosta de conhecer a história da doçaria ou de experimentar novas “velhas” receitas aconselha-se a compra do livro. Estudar e divulgar a doçaria portuguesa é uma forma de preservar a nossa memória colectiva. Parabéns ao autor.

Nevadas (antigamente designados palermos cobertos), fabricadas na Pastelaria O Mosteiro, em Lorvão. Fotografia de IMF. 19.10.2012

Nevadas (antigamente designados palermos cobertos), fabricadas na Pastelaria O Mosteiro, em Lorvão. Fotografia de IMF. 19.10.2012

Se ficou com água na boca, nada melhor do que sair do mosteiro, atravessar a rua e entrar na pastelaria «O Mosteiro», onde poderá saborear os palermos cobertos, hoje designados nevadas. Mas aí encontrará outra doçaria de inspiração conventual como os queijinhos (doce de ovo e amêndoa), os pastéis de Lorvão (com amêndoa) e os mimos (com amêndoa sem pele).

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Bibliografia

BORGES, 2013
Nelson Correia Borges – Doçaria Conventual de Lorvão. Penacova: Câmara Municipal, 2013.

DICCIONARIO, 2001
Diccionario de la lengua española. 2 vol. 22.ª ed. Madrid: Espasa Calpe, 2001.

FERNANDES, 2012
Isabel Maria Fernandes – Doçaria de Guimarães: sua história. In Doçaria de Guimarães: sua história. Guimarães: Despertar Memórias, 2012. P. 9-73.

HOUAISS, 2003
Dicionário Houaiss. Vol. 1. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2003.

4 thoughts on “O Mosteiro de Lorvão e a Doçaria Conventual

  1. Pingback: NELSON CORREIA BORGES – Lorvão, uma história muito doce | Histórias de Portugal

  2. Como sou da Figueira da Foz, gostei ainda mais desta visita guiada. Ficou a vontade de ler o livro…

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