Os portugueses e os rabanetes… no século XVI

Nas leituras que vou fazendo, aqui e ali, deparo com textos que nos “caracterizam” como povo. A epístola quinhentista de Clenardo que abaixo transcrevo, é um desses textos que frequentemente relembro e releio. Passaram quase quinhentos anos sobre o que Clenardo escreveu sobre nós, mas, a verdade é que continuamos com os mesmos defeitos, o mesmo gosto pelas aparências…
Nicolau Clenardo foi um humanista de origem flamenga (Diest 1493/1494 – Granada, 1542), mestre do Cardeal-Rei D. Henrique. Viveu em Évora e percorreu o país, tendo estado, por exemplo, em Braga e Guimarães.
Numa das muitas cartas que escreveu ao seu amigo, o humanista Tiago Látomo, teólogo em Lovaina, caracteriza os portugueses, contando uma história… A carta foi enviada de Évora, a 5 de Março de 1535.

“Clenardo ao seu querido Látomo
(…) Se quisesse condescender com os costumes desta terra, começaria por sustentar uma mula e quatro lacaios. Mas como seria possível? – Jejuando em casa, enquanto brilhava fora como um triunfador, e teria que tragar este amargo remédio de dever mais do que poderia pagar. Eis aí o que faz um cortesão acabado!
Isto faz-me lembrar um certo indivíduo, pelo qual imaginareis os outros. Este, cujo retrato vos vou descrever, andava de rixa com um estrangeiro, creio que francês, que viera para Portugal no tempo de D. Manuel, como fazendo parte da casa da rainha D. Leonor. O português levava-lhes a palma no fausto exterior, mas o francês tinha melhor mesa. Conhecendo este, como quer que fosse, os hábitos locais e levado pela curiosidade, conseguiu habilidosamente obter o livro onde eram lançadas as despesas diárias do outro. Acertou de dar logo com os olhos num passo bastante cómico, mas genuinamente português. Encontrara apontada a seguinte diária:
Água……. 4 ceitis
Pão …….. 2 reais
Rabanetes …… 4 ½ reais

E como durante toda a semana continuassem estas prodigalidades, imaginou que o Domingo, esse pelo menos, seria lautamente banqueteado; mas para esse dia (que viu ele?) achou simplesmente isto escrito: – ‘Hoje nada, por não haver rabanetes na praça’.

Há aqui, meu caro Látomo, uma chusma desses faustosos rafanófagos, que trazem todavia pela rua atrás de si maior número de criados do que de reais gastam em casa. E até creio que chega a havê-los, com menos rendimento do que eu, que, não obstante, trazem uma comitiva de oito criados, que sustentam sabe Deus como, se não à custa duma abundante alimentação, certamente à força de fome e por outros meios, que eu sou muito estúpido para aprender nunca em dias de minha vida. E não é muito difícil recrutar uma turba inútil de servidores, porque esta gente prefere tudo a suportar a aprender qualquer profissão.
Mas para que serve, perguntar-me-eis vós, um tal séquito? – Não falta que fazer a cada um, embora todos levem vida regalada: dois caminham adiante; o terceiro leva o chapéu; o quarto o capote, não adregue de chover; o quinto pega na rédea da cavalgadura; o sexto é para segurar os sapatos de seda; o sétimo traz uma escova para limpar de pelos o fato; o oitavo um pano para enxugar o suor da besta, enquanto o amo ouve missa ou conversa com algum amigo; o nono apresenta-lhe o pente, se tem de ir cumprimentar alguém de importância, não vá ele aparecer com a cabeleira por pentear. Dou testemunho de coisas que tenho visto com os meus próprios olhos. (…)
Évora, 5 de Março de 1535”.

In M. Gonçalves Cerejeira – Clenardo: o humanismo em Portugal: com a tradução das suas cartas. Coimbra: Coimbra Editora, 1926. P. 279-280.

6 thoughts on “Os portugueses e os rabanetes… no século XVI

    • Sem ter a certeza absoluta, julgo que rábanos e rabanetes são coisas diferentes. São da mesma “família”, mas terão tamanhos diferentes. Esta semana vi à venda, pela primeira vez, rábanos no supermercado Continente em Guimarães. e são muitíssimos maiores do que os minúsculos rabanetes.

  1. Há dois tipos de portugueses : os senhores e os servos, uns poucos vivendo das aparências, os outros dobrando a costela aos primeiros.

  2. Pingback: Clenardo e a estalagem junto ao Tejo… no século XVI | Saberes cruzados

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